O autor: Jacques Le Goff
Jacques Le Goff nasceu no Sul da França em 1924 e ainda garoto, após ler a mais famosa obra de Walter Scott – Ivanhoé – jamais abandonou o interesse pelo medievo. Aos oitenta anos de idade, portanto em 2004, foi reconhecido universalmente, juntamente com Georges Duby e Le Roy Ladurie, como um dos maiores Medievalistas da França pós Segunda Grande Guerra.
A carreira de Le Goff foi uma ascensão desde os bancos escolares até os níveis superiores. Foi aluno da Escola Normal Superior de Paris e no famoso Liceu Louis-le Grand, que em 1994 receberia como aluno o mais famoso filósofo da França pós Segunda Guerra Mundial, Jean-Paul Sarte.
Influenciado pelo medievalista March Bloch, que fora fuzilado por militares na resistência francesa à ocupação nazista em 1944, Le Goff mergulha nos manuscritos antigos, tratados escolásticos, pergaminhos e rolos veneráveis que guardavam os segredos e as controvérsias medievais. O resultado foi a descoberta de uma época distinta do que o Renascimento descrevia, ou seja, a dark age (era das trevas) dos ingleses.
Le Goff é um autor conhecido no Brasil tendo vários livros editados como: A história nova, Os intelectuais na idade média, História da memória, O Deus da idade média: conversas com Jean-Luc Pouthier, A bolsa e a vida: usura na Idade Média, As raízes medievais da Europa, A idade média explicada a meu filho, entre outros.
A obra: História e Memória - visão geral
A Memória e a História por vezes parecem ser simbióticas, envolvendo-se em torno de um objeto, de uma pessoa, de um fato, de uma temporalidade, todavia o que as distingue fundamentalmente?
A obra História e Memória de Jacques Le Goff (responsável pela Escola dos Annales em sua terceira geração, por volta de 1970) apresenta-se dividida em 10 capítulos, tendo sido lançada em 1988, e ao tratar da História são evocadas algumas relações entre a) a História Objetiva (enquanto Ciência) e a história vivida (processo; lembrança); b) a História em sua temporalidade (natural, cronológica e cíclica); c) a dimensão dialética da História (em seus conflitos, oposições e contradições) tendo em vista o passado e o presente; d) a História e o futuro; e) a História e seu intercâmbio com as outras Ciências.
Dois capítulos do livro merecem especial leitura pelas demais áreas da Ciências Sociais, pois se tornaram referência teórica e metodológica: * Memória e * Documento/Monumento.
Entre o relato de um fato por uma testemunha ocular e a explicação de um evento, a História percorreu um longo caminho entre o mito e a cientificidade legitimada. Das "lendas originárias" da humanidade à religião ou às ideologias como categorias de interpretação, a subjetividade beira às análises dos documentos, por isso o autor chama a atenção para a necessidade da crítica do documento que não é um material bruto, objetivo e inocente, mas que exprime o poder da sociedade (ou dos grupos sociais que detém o poder) do passado sobre a memória e o futuro tornando assim o documento. Desse modo, todo o documento é fruto de uma escolha, quer seja a de decidir o que deve ser arquivado e o que deve ser descartado (nenhum arquivo guarda todos os documentos da humanidade, sem lacunas!), quer seja quais documentos devem ser utilizados na interpretação de determinado fato histórico.
O fato histórico é uma construção e a História uma criação do historiador, que pode ser afirmada ou refutada por gerações de pesquisadores futuros com base na "descoberta" de novos documentos outrora não relacionados ou com a utilização de novo métodos de análise documental. E dentro desse esforço por compreender pessoas, relações sociais e acontecimentos, o tempo é por excelência uma peça fundamental para os estudos históricos. Seja o tempo como demarcador de uma cronologia, cristalizado em um calendário que transita entre as origens míticas e religiosas da humanidade ao progresso tecnológico.
Toma-se então o calendário como uma tentativa humana de controle do tempo da natureza, empreendendo uma periodização que o torna um tempo histórico fragmentado. Todavia, a ideia de tempo linear, contínuo e irreversível é criticada na obra de Le Goff, reafirmando a concepção de tempo indicada pela Escola dos Annales com ritmos diferenciados. Nesse contexto eventos do século XX como o marxismo, o facismo, o nazismo, as duas grandes guerras mundiais e a bomba atômica, a renovação das teorias e metodologias da História via Escola dos Annales e a trajetória do terceiro mundo com suas peculiaridades históricas são abordados.
A obra: História e Memória em capítulos.
Capítulo I - História.
Ao dialogar com vários autores como Paul Veyne, Marc Bloch, Benedetto Croce, Lucien Febvre, dentre outros, Le Goff busca refletir sobre a História em sua temporalidade sem reduzi-la às concepções europeias/ocidentais. Objetiva-se resgatar a raiz da palavra História em seu sentido de "ver" e "procurar" (do valor do testemunho), compreendendo os processos de montagem teórica e técnica a partir dos documentos, caminhando por lacunas e inexatidões, como arte de reconstrução e não de ressuscitação. Para Marc Bloch, longe de se preocupar somente com o passado, a História é a ciência dos homens no tempo (no seu tempo, tempo mutável, longo, que se desdobra no presente e no futuro). Nesse trajeto são ressaltadas as rupturas e descontinuidades temporais, bem como as necessidades contemporâneas que atuam sobre as análises históricas. Há críticas à História de historiadores oficiais em seu distanciamento da História coletiva, em sua parcialidade privilegiando os indivíduos ("grandes homens") e postura de "donos da verdade" na narração de "um conto de fatos verdadeiros". Enfatiza-se a singularidade do fato histórico que não se repete como experiência de laboratório, mas que mesmo assim, alguns historiadores tentam generalizar tais singularidades.
Para Le Goff a memória não é História, mas um de seus objetos e um campo para elaboração histórica. Ressalta que toda História e relativamente contemporânea à medida que o passado é apreendido pelo presente. Vê a cultura como uma mentalidade histórica, ligada à diferentes concepções de tempo existentes nas sociedades. Destaca a importância da oralidade nesse processo, pois todas as sociedades possuem História (quer tenham escrita ou não), apontando ainda o papel da problematização dos mitos como um dado importante para a reflexão histórica e para o olhar etnológico (de onde se vêem as outras culturas a partir da cultura em que se vive).
O filósofo Michel Foucault é citado como aquele que reforça a necessidade de se questionar os documentos (e não tomá-los como reprodução da verdade de um fato histórico), atentar à descontinuidade do tempo (às mudanças, transformações) e principalmente no interesse pelo desenvolvimento da prática e da metodologia histórica. Assim a História se configura como Ciência de fato e passa a ser ensinada com um sentido mais objetivo.
Para a História o documento fala mesmo nos seus silêncios e até os falsos documentos têm algo a dizer. A História não é divina, é humana e por isso passível de seus equívocos e tentações. Olhos bem abertos sem ingenuidades, teoria aprofundada, metodologia compatível e perguntas-problemas são elementos fundamentais ao ofício do historiador.
Capítulo 2 - Antigo/Moderno
Pela definição ocidental, os conceitos de antigo e moderno referem-se às oposições tradicional (passado)/ inovador (recente). Todavia a modernidade foi apresentada como um conceito negativo da cultura industrial, isso posto que nas sociedades tradicionais a antiguidade possui um valor seguro, onde a memória coletiva está depositada nos mais idosos. Com a consciência da modernidade há um sentimento de ruptura com o passado e o moderno surge para afastar o que considera um atraso. Le Goff chama atenção para o lançamento do termo "modernidade" em 1860 por Baudelaire; já Henri Lefebvre vai distinguir modernidade de modernismo ("A modernidade como resultado ideológico do modernismo"). Sendo que o moderno não estaria se opondo ao antigo e sim ao primitivo, voltando-se para o passado de onde retira sua força.
Capítulo 3 - Passado/Presente.
O passado como "função social" congrega também brechas para a inovação, para a mudança, no processo de "renascenças", de retorno e progresso. Segundo Marx haveria um culto reacionário do passado que deveria ter um fim. Esse "culto ao passado" teria alimentado as ideologias fascistas e nazistas. Segundo Bourdieu, quando uma classe entra em declínio volta-se para o passado em busca de referências melhores. E por mais paradoxal que possa ser, a aceleração da História e das sociedades industrializadas levou as massas à nostalgia, ao religamento com suas raízes, voltando-se para a História, Arqueologia, Folclore, Fotografia (como criadora de memórias e recordações) e o prestígio da noção de patrimônio.
Capítulo 4 - Progresso/Reação.
A ideia de progresso provém da antiguidade greco-romana. A mudança era vista como corrupção e desordem. O futuro dos homens estava ofuscado pela lembrança das divindades e dos heróis mitológicos. Com o nascimento da imprensa no século XV e a Revolução Francesa (1789) a ideia de progresso em relação Idade Média toma impulso. Mas a concepção de progresso na História continua sendo cíclica (desenvolvimento, apogeu e decadência). Entre 1840 e 1890 há um grande boom econômico e industrial do progresso no Ocidente. Assim, a ideia de progresso está atada à uma ideologia burguesa que a crise de 1929 faz ruir. Depois da segunda guerra mundial o progresso é despertado no terceiro mundo.
Capítulo 5 - Idades Míticas.
Para dominar o tempo e a História e satisfazer as próprias aspirações de felicidade e justiça ou os temores face ao desenrolar ilusório ou inquietante dos acontecimentos, as sociedades humanas imaginaram a existência, no passado e no futuro, de épocas excepcionalmente felizes ou catastróficas e, por vezes, inseriram essas épocas originais ou derradeiras numa série de idades, segundo uma certa ordem. Essas idades míticas normalmente estão vinculadas à religião. E a idade mítica final repete a final, como um evento cíclico de eterno retorno. Do caos ao renascimento, à ordem, para novamente entrar em declínio. O que está em causa, em primeiro lugar, nas idades Míticas, é a ideia de progresso. Tudo era, realmente, melhor no início? As teorias das Idades Míticas introduziram, no tempo e na história, a idéia de período e ainda, a idéia de uma coerência na sucessão dos períodos, a noção da periodização.
Capítulo 6 - Escatologia.
Escatologia é a doutrina das crenças que abordam o destino final do homem e do universo, considerado um tema recente datado do século XIX. Citando Bultmann, Le Goff afirma que escatologia é “quando o homem é colocado perante uma decisão”. O ano novo ao mesmo tempo inspira morte e ressurreição. O oráculo é uma divindade que revela seus segredos. A laicização é considerada uma das primeiras metamorfoses da escatologia.
O termo não se opõe a progresso, mas é mais comum ser ligado a ideia de envelhecimento. A maioria das teorias acerca da decadência provém de pensadores, de grupos ou de sociedades que corrigem o seu pessimismo com uma crença ainda mais forte da vinda obrigatória de uma renovação. A decadência é uma fase necessária para a renovação. Mas a noção de decadência talvez esteja ao serviço de certos tipos de história, hoje profundamente desacreditados: a história política, a história linear ou cíclica, a história catastrófica.
Capítulo 8 - Memória.
A memória é uma representação do passado, sendo histórica e social. A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. Em sociedades de memória essencialmente oral há diferenças das essencialmente escritas. O aparecimento da escrita está ligado a uma profunda transformação da memória coletiva. A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é comemoração, a celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável. A outra forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita. Importa salientar que todo documento tem em si um caráter de monumento e não existe memória coletiva bruta. Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos, A comemoração funerária encontra aí um novo desenvolvimento. Em numerosos países é erigido um túmulo ao soldado desconhecido, associado a anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em torno de memória comum. A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. A memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão. Le Goff chama a atenção para a memória dos computadores (ela é auxiliar dos seres humanos) e o código genética, ambos dotados de memória, embora não humana. A memória onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.
Capítulo 9 - Calendário.
O tempo do calendário é totalmente social, mas submetido aos ritmos do universo. O calendário é um objeto cultural, enquanto organizador do quadro temporal, diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é, sobretudo, um objeto social. A conquista do tempo através da medida é claramente percebido como um dos importantes aspectos do controle do universo pelo homem. O calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos do poder. A reforma e a revolução francesa são exemplos de mudanças no calendário. Para garantir o poder, o calendário estabelece festas que perpetua a recordação de feitos ligados a um grupo social. Nos diversos sistemas sócio-econômicos e políticos, o controle do calendário torna mais fácil a manipulação de dois instrumentos essenciais do poder: o imposto, no caso do poder estatal; e os tributos, no caso de poder feudal. O calendário muçulmano foi sempre lunar e não o solar. Há o calendário baseado nas estações do ano. Uma função essencial do calendário é a de ritmar a dialética do trabalho e do tempo livre, o entrecruzamento dos dois tempos: o tempo regular, mas linear do trabalho, mas sensível a mutações históricas, e o tempo cíclico da festa, mais tradicional. O calendário, órgão de um tempo que recomeça sempre, conduz paradoxalmente à instituição de uma história cronológica dos acontecimentos. A história dos almanaques e dos calendários é uma história de reis e de grandes personagens, de heróis e, antes de mais nada, de heróis nacionais.
Capítulo 10 - Documento/Monumento.
A memória coletiva e a sua forma científica, a História, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Memória: fazer recordar. Monumento é um sinal do passado. O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar e recordação, por exemplo, os atos escritos. O monumento tem como características, o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas. Originalmente o documento se opunha ao monumento, que era intencional. Devemos criticar a história fundada sob os documentos. Embora a concepção de documento resista a mudanças, seu conteúdo se dilatou muito. O interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. Para Foucault o problema da história está em questionar os documentos. Desestruturar o documento evidenciando o seu caráter de monumento. O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. Não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira... falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. É importante não isolar os documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte.