domingo, 25 de março de 2012

Paper Roger Chartier. História Cultural - Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/ Bertrand Brasil, 1990.

O autor: biografia e obras


Roger Chartier nasceu em Lyon, na França, em 1945. Desde jovem tem se  dedicado a pesquisas e projetos coletivos na direção de novas abordagens e de  novos objetos para a história, fazendo parte da terceira geração do grupo de pesquisadores conhecido como Escola dos Analles. Sua trajetória intelectual abrange várias linhas de pesquisa: uma primeira linha seria a história das instituições de  ensino e das sociabilidades intelectuais; uma segunda linha de pesquisa, que perpassa o conjunto de sua obra, é constituída pela história do livro e das práticas de  escrita e de leitura; uma terceira linha de pesquisa seria a análise e o debate entre política, cultura e cultura popular; uma outra linha ainda pode ser derivada de  suas reflexões sobre o ofício de historiador, expressas em suas publicações e em  suas atividades como divulgador de uma nova história. Diretor na Escola de Altos  Estudos em Ciências Sociais, em Paris,e professor especializado em história das práticas culturais e história da leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos  historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. Sua  reflexão teórica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos em história cultural e estimula a permanente renovação nas maneiras de ler e fazer a história. Chartier foi professor nas universidades Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John Hopkins, Chicago, Pensilvânia, Berkeley.Roger Chartier escreveu muitas obras. Referenciamos aqui só as publicadas no Brasil: História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes; Cultura  escrita, literatura e história; Formas do sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação; Os desafios da escrita; A aventura do livro; À beira da falésia; Do Palco à Página; A ordem dos livros; História da leitura no mundo ocidental; Práticas da leitura; O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente;  e Leituras e leitores na França do Antigo Regime.


Sobre a obra:

Em sua obra “A História Cultural: Entre Práticas e Representações”, composta por oito ensaios publicados entre 1982 e 1986, Chartier evidencia que, nos anos de 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de saber controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas estatísticas, conceitos teóricos dentre outros. Esses historiadores acreditavam que o saber inerente à história devia se sobrepor à narrativa, por acharem que o mundo da narrativa era o mundo da ficção, do imaginário, da fábula. Contudo a tendência hegemônica da historiografia atual propõe uma nova forma de interrogar a realidade, toma como base temas do domínio da cultura e salienta o papel das representações. A História Cultural, esclarece Chartier, éimportante para identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social éconstruída, pensada, dada a ler. Portanto, ao voltar-se para a vida social, esse campo pode tomar por objeto as formas e os motivos das suas representações e pensá-las como análise do trabalho de representação das classificações e das exclusões que constituem as configurações sociais e conceituais de um tempo ou de um espaço. No entanto, a História Cultural deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido, uma vez que as representações podem ser pensadas como “[...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990,p.17). Como se vê, os processos estabelecidos a partir da História Cultural envolvem a relação que se estabelece entre a história dos textos, a história dos livros e a história da leitura, permitindo a Chartier uma fértil reflexão a respeito da natureza da História como discurso acerca da realidade e ainda de como o historiador exerce o seu ofício para compreender tal realidade. Podemos perceber que a obra de Chartier se destaca por impor o trato de problemas conceituais como representação, prática e apropriação. A partir deles, o autor considera questões como as formas narrativas do discurso histórico e literário, fundamentais à interpretação dos documentos que o historiador toma por objeto. Entendemos que para compreender melhor esses conceitos é fundamental conhecer as idéias de historiadores como, por exemplo, Pierre Bordieu, Michel de Certeau, Michel Foucault e Paul Ricoeur, influenciados pela Escola dos Analles, como também as idéias de alguns autores influenciados pela Escola de Frankfurt, como Gadamer, Geertz, Habermas, Jauss e Norbert Elias. Para Roger Chartier, um autor pode ser lido e entendido quando se leva em consideração o contexto no qual o seu trabalho foi produzido, por isso pensar, portanto, os processos de civilização nos possibilitam ir do discurso ao fato, questionando a idéia de fonte como mero instrumento de mediação e testemunho de uma realidade e considerando as representações como realidade de múltiplos sentidos, mesmo porque as representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Chartier acredita que há algo específico no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas específicas. Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou uma prática de história cultural. Para produzi-la, o historiador deve ler os documentos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de prova. Portanto, se é preciso adotar essas técnicas em particular, é porque há uma intenção diferente no fazer história, que é restabelecer a verdade entre o relato e o que é o objeto deste relato. O historiador hoje precisa achar uma forma de atender a essa exigência de cientificidade que supõe o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares, sabendo que, seja qual for a sua forma de escrita, esta pertencerá sempre à categoria dos relatos, da narrativa. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem as utiliza (CHARTIER, 1990, p.16). Um texto pode aplicar-se à situação do leitor e, como configuração narrativa, pode corresponder a uma refiguração da própria experiência. Por isso, entre o texto e o sujeito que lê, coloca-se uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão de si próprio e do mundo. O autor esclarece que os agenciamentos discursivos e as categorias que os fundam – como os sistemas de classificação, os critérios de recorte, os modos de representações – não se reduzem absolutamente às idéias que enunciam ou aos temas que contêm, mas possuem sua lógica própria – e uma lógica que pode muito bem ser contraditória, em seus efeitos, como letra da mensagem (CHARTIER, 1990, p.187).As contribuições que Chartier incorporou aos seus estudos são grandes e diversas. Podemos citar as categorias como habitus, tomada da obra de Pierre Bordieu; configuração e processo, apanhadas em Norbert Elias; representação, apreendida com Louis Marin; idéias como controle da difusão e circulação do discurso, buscadas em Michel Foucault; produção do novo a partir das contribuições existentes, tal como pensada por Paul Ricoeur; e a apropriação e transformação cultural, do mesmo modo proposto por Michel de Certeau. As filiações teóricas de Roger Chartier serviram para que os pesquisadores compreendessem a necessidade de mergulhar nas teorias e metodologias da História, na prática dos arquivos, realizando a operação historiográfica proposta por Michel de Certeau. Partindo da observação dos conceitos usados por Roger Chartier, é possível perceber que ele se preocupa com a forma através da qual os indivíduos se apropriam de determinados conceitos. Assim valoriza as mentalidades coletivas. Conceitos como os de utensilagem mental, visão de mundo e configuração têm importância fundamental para o estabelecimento de um diálogo com as fontes. É necessário aprofundar os estudos em torno dos conceitos fundamentais difundidos por esse importante interlocutor dos fenômenos da cultura de um modo geral, buscando um maior conhecimento a respeito das condições de produção da sua obra e das suas ferramentas de análise. O trabalho de Roger Chartier cria condições para que se estabeleça uma nova postura nos estudos da História Cultural diante dos métodos, das fontes e dos temas estudados, buscando, da mesma maneira, nos diversos ramos especializados da História um diálogo mais fértil com a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia e a teoria literária.

FONTE: AMARAL, Ieda Ramona do; FARIA, Luciane Miranda. Resenha sobre o livro de Roger chartier: a história cultural entre práticas e representações. In: Revista de Educação Pública, Cuiabá/MT, v. 16, n. 30, p. 183-186, jan.-abr. 2007.

Texto 2 da Unidade I: Roger Chartier


Prezados alunos, 

depois de longos dias na companhia de Jacques Le Goff, sairemos um pouco da discussão sobre História e Memória para adentrar o mundo das Representações Sociais de Roger Chartier!

Os capítulos referentes ao livro já se encontram na copiadora, providenciado gentilmente pela monitora da turma Danielle Oliveira. Alguns já possuem o livro digitalizado. Conferir na turma e socializar a obra.

CHARTIER, Roger. História Cultural - Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/ Bertrand Brasil, 1990.


Ou a obra virtual em: http://pt.scribd.com/doc/86567602/A-Historia-Cultural-Entre-praticas-e-representacoes-Roger-Chartier

sexta-feira, 2 de março de 2012

Paper Jacques Le Goff. História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994.


O autor: Jacques Le Goff


      Jacques Le Goff nasceu no Sul da França em 1924 e ainda garoto, após ler a mais famosa obra de Walter Scott – Ivanhoé – jamais abandonou o interesse pelo medievo. Aos oitenta anos de idade, portanto em 2004, foi reconhecido universalmente, juntamente com Georges Duby e Le Roy Ladurie, como um dos maiores Medievalistas da França pós Segunda Grande Guerra.
       A carreira de Le Goff foi uma ascensão desde os bancos escolares até os níveis superiores. Foi aluno da Escola Normal Superior de Paris e no famoso Liceu Louis-le Grand, que em 1994 receberia como aluno o mais famoso filósofo da França pós Segunda Guerra Mundial, Jean-Paul Sarte.
    Influenciado pelo medievalista March Bloch, que fora fuzilado por militares na resistência francesa à ocupação nazista em 1944, Le Goff mergulha nos manuscritos antigos, tratados escolásticos, pergaminhos e rolos veneráveis que guardavam os segredos e as controvérsias medievais. O resultado foi a descoberta de uma época distinta do que o Renascimento descrevia, ou seja, a dark age (era das trevas) dos ingleses.
     Le Goff é um autor conhecido no Brasil tendo vários livros editados como: A história nova, Os intelectuais na idade média, História da memória, O Deus da idade média: conversas com Jean-Luc Pouthier, A bolsa e a vida: usura na Idade Média, As raízes medievais da Europa, A idade média explicada a meu filho, entre outros. 

(Fonte: Bernardo Rafael de Carvalho Pereira. História e Memória, In: http://www.filosofante.com.br/?p=822, Acesso: 02/03/2012)


A obra: História e Memória - visão geral

A Memória e a História por vezes parecem ser simbióticas, envolvendo-se em torno de um objeto, de uma pessoa, de um fato, de uma temporalidade, todavia o que as distingue fundamentalmente?

A obra História e Memória de Jacques Le Goff (responsável pela Escola dos Annales em sua terceira geração, por volta de 1970) apresenta-se dividida em 10 capítulos, tendo sido lançada em 1988, e ao tratar da História são evocadas algumas relações entre a) a História Objetiva (enquanto Ciência) e a história vivida  (processo; lembrança); b) a História em sua temporalidade (natural, cronológica e cíclica); c) a dimensão dialética da História (em seus conflitos, oposições e contradições) tendo em vista o passado e o presente; d) a História e o futuro; e) a História e seu intercâmbio com as outras Ciências.

Dois capítulos do livro merecem especial leitura pelas demais áreas da Ciências Sociais, pois se tornaram referência teórica e metodológica: * Memória e * Documento/Monumento.

Entre o relato de um fato por uma testemunha ocular e a explicação de um evento, a História percorreu um longo caminho entre o mito e a cientificidade legitimada. Das "lendas originárias" da humanidade à religião ou às ideologias como categorias de interpretação, a subjetividade beira às análises dos documentos, por isso o autor chama a atenção para a necessidade da crítica do documento que não é um material bruto, objetivo e inocente, mas que exprime o poder da sociedade (ou dos grupos sociais que detém o poder) do passado sobre a memória e o futuro tornando assim o documento. Desse modo, todo o documento é fruto de uma escolha, quer seja a de decidir o que deve ser arquivado e o que deve ser descartado (nenhum arquivo guarda todos os documentos da humanidade, sem lacunas!), quer seja quais documentos devem ser utilizados na interpretação de determinado fato histórico.

O fato histórico é uma construção e a História uma criação do historiador, que pode ser afirmada ou refutada por gerações de pesquisadores futuros com base na "descoberta" de novos documentos outrora não relacionados ou com a utilização de novo métodos de análise documental. E dentro desse esforço por compreender pessoas, relações sociais e acontecimentos, o tempo é por excelência uma peça fundamental para os estudos históricos. Seja o tempo como demarcador de uma cronologia, cristalizado em um calendário que transita entre as origens míticas e religiosas da humanidade ao progresso tecnológico.

Toma-se então o calendário como uma tentativa humana de controle do tempo da natureza, empreendendo uma periodização que o torna um tempo histórico fragmentado. Todavia, a ideia de tempo linear, contínuo e irreversível é criticada na obra de Le Goff, reafirmando a concepção de tempo indicada pela Escola dos Annales com ritmos diferenciados. Nesse contexto eventos do século XX como o marxismo, o facismo, o nazismo, as duas grandes guerras mundiais e a bomba atômica, a renovação das teorias e metodologias da História via Escola dos Annales e a trajetória do terceiro mundo com suas peculiaridades históricas são abordados.


A obra: História e Memória em capítulos.

Capítulo I - História.

Ao dialogar com vários autores como Paul Veyne, Marc Bloch, Benedetto Croce, Lucien Febvre, dentre outros, Le Goff busca refletir sobre a História em sua temporalidade sem reduzi-la às concepções europeias/ocidentais. Objetiva-se resgatar a raiz da palavra História em seu sentido de "ver" e "procurar" (do valor do testemunho), compreendendo os processos de montagem teórica e técnica a partir dos documentos, caminhando por lacunas e inexatidões, como arte de reconstrução e não de ressuscitação. Para Marc Bloch, longe de se preocupar somente com o passado, a História é a ciência dos homens no tempo (no seu tempo, tempo mutável, longo, que se desdobra no presente e no futuro). Nesse trajeto são ressaltadas as rupturas e descontinuidades temporais, bem como as necessidades contemporâneas que atuam sobre as análises históricas. Há críticas à História de historiadores oficiais em seu distanciamento da História coletiva, em sua parcialidade privilegiando os indivíduos ("grandes homens") e postura de "donos da verdade" na narração de "um conto de fatos verdadeiros". Enfatiza-se a singularidade do fato histórico que não se repete como experiência de laboratório, mas que mesmo assim, alguns historiadores tentam generalizar tais singularidades.

Para Le Goff a memória não é História, mas um de seus objetos e um campo para elaboração histórica. Ressalta que toda História e relativamente contemporânea à medida que o passado é apreendido pelo presente. Vê a cultura como uma mentalidade histórica, ligada à diferentes concepções de tempo existentes nas sociedades. Destaca a importância da oralidade nesse processo, pois todas as sociedades possuem História (quer tenham escrita ou não), apontando ainda o papel da problematização dos mitos como um dado importante para a reflexão histórica e para o olhar etnológico (de onde se vêem as outras culturas a partir da cultura em que se vive).

O filósofo Michel Foucault é citado como aquele que reforça a necessidade de se questionar os documentos (e não tomá-los como reprodução da verdade de um fato histórico), atentar à descontinuidade do tempo (às mudanças, transformações) e principalmente no interesse pelo desenvolvimento da prática e da metodologia histórica. Assim a História se configura como Ciência de fato e passa a ser ensinada com um sentido mais objetivo.

Para a História o documento fala mesmo nos seus silêncios e até os falsos documentos têm algo a dizer. A História não é divina, é humana e por isso passível de seus equívocos e tentações. Olhos bem abertos sem ingenuidades, teoria aprofundada, metodologia compatível e perguntas-problemas são elementos fundamentais ao ofício do historiador.

Capítulo 2 - Antigo/Moderno

Pela definição ocidental, os conceitos de antigo e moderno referem-se às oposições tradicional (passado)/ inovador (recente). Todavia a modernidade foi apresentada como um conceito negativo da cultura industrial, isso posto que nas sociedades tradicionais a antiguidade possui um valor seguro, onde a memória coletiva está depositada nos mais idosos. Com a consciência da modernidade há um sentimento de ruptura com o passado e o moderno surge para afastar o que considera um atraso. Le Goff chama atenção para o lançamento do termo "modernidade" em 1860 por Baudelaire; já Henri Lefebvre vai distinguir modernidade de modernismo ("A modernidade como resultado ideológico do modernismo"). Sendo que o moderno não estaria se opondo ao antigo e sim ao primitivo, voltando-se para o passado de onde retira sua força.

Capítulo 3 - Passado/Presente.

O passado como "função social" congrega também brechas para a inovação, para a mudança, no processo de "renascenças", de retorno e progresso. Segundo Marx haveria um culto reacionário do passado que deveria ter um fim. Esse "culto ao passado" teria alimentado as ideologias fascistas e nazistas. Segundo Bourdieu, quando uma classe entra em declínio volta-se para o passado em busca de referências melhores. E por mais paradoxal que possa ser, a aceleração da História e das sociedades industrializadas levou as massas à nostalgia, ao religamento com suas raízes, voltando-se para a História, Arqueologia, Folclore, Fotografia (como criadora de memórias e recordações) e o prestígio da noção de patrimônio.

Capítulo 4 - Progresso/Reação.

ideia de progresso provém da antiguidade greco-romana. A mudança era vista como corrupção e desordem. O futuro dos homens estava ofuscado pela lembrança das divindades e dos heróis mitológicos. Com o nascimento da imprensa no século XV e a Revolução Francesa (1789) a ideia de progresso em relação Idade Média toma impulso. Mas a concepção de progresso na História continua sendo cíclica (desenvolvimento, apogeu e decadência). Entre 1840 e 1890 há um grande boom econômico e industrial do progresso no Ocidente. Assim, a ideia de progresso está atada à uma ideologia burguesa que a crise de 1929 faz ruir. Depois da segunda guerra mundial o progresso é despertado no terceiro mundo.

Capítulo 5 - Idades Míticas.

Para dominar o tempo e a História e satisfazer as próprias aspirações de felicidade e justiça ou os temores face ao desenrolar ilusório ou inquietante dos acontecimentos, as sociedades humanas imaginaram a existência, no passado e no futuro, de épocas excepcionalmente felizes ou catastróficas e, por vezes, inseriram essas épocas originais ou derradeiras numa série de idades, segundo uma certa ordem. Essas idades míticas normalmente estão vinculadas à religião. E a idade mítica final repete a final, como um evento cíclico de eterno retorno. Do caos ao renascimento, à ordem, para novamente entrar em declínio. O que está em causa, em primeiro lugar, nas idades Míticas, é a ideia de progresso. Tudo era, realmente, melhor no início? As teorias das Idades Míticas introduziram, no tempo e na história, a idéia de período e ainda, a idéia de uma coerência na sucessão dos períodos, a noção da periodização.

Capítulo 6 - Escatologia.

Escatologia é a doutrina das crenças que abordam o destino final do homem e do universo, considerado um tema recente datado do século XIX. Citando Bultmann, Le Goff  afirma que escatologia é “quando o homem é colocado perante uma decisão”. O ano novo ao mesmo tempo inspira morte e ressurreição. O oráculo é uma divindade que revela seus segredos. A laicização é considerada uma das primeiras metamorfoses da escatologia.

Capítulo 7 - Decadência.

O termo não se opõe a progresso, mas é mais comum ser ligado a ideia de envelhecimento. A maioria das teorias acerca da decadência provém de pensadores, de grupos ou de sociedades que corrigem o seu pessimismo com uma crença ainda mais forte da vinda obrigatória de uma renovação. A decadência é uma fase necessária para a renovação. Mas a noção de decadência talvez esteja ao serviço de certos tipos de história, hoje profundamente desacreditados: a história política, a história linear ou cíclica, a história catastrófica.

Capítulo 8 - Memória.

A memória é uma representação do passado, sendo histórica e social. A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. Em sociedades de memória essencialmente oral há diferenças das essencialmente escritas. O aparecimento da escrita está ligado a uma profunda transformação da memória coletiva. A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é comemoração, a celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável. A outra forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita. Importa salientar que todo documento tem em si um caráter de monumento e não existe memória coletiva bruta. Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos, A comemoração funerária encontra aí um novo desenvolvimento. Em numerosos países é erigido um túmulo ao soldado desconhecido, associado a anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em torno de memória comum. A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. A memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão. Le Goff chama a atenção para a memória dos computadores (ela é auxiliar dos seres humanos) e o código genética, ambos dotados de memória, embora não humana. A memória onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.

Capítulo 9 - Calendário.

O tempo do calendário é totalmente social, mas submetido aos ritmos do universo. O calendário é um objeto cultural, enquanto organizador do quadro temporal, diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é, sobretudo, um objeto social. A conquista do tempo através da medida é claramente percebido como um dos importantes aspectos do controle do universo pelo homem. O calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos do poder. A reforma e a revolução francesa são exemplos de mudanças no calendário. Para garantir o poder, o calendário estabelece festas que perpetua a recordação de feitos ligados a um grupo social. Nos diversos sistemas sócio-econômicos e políticos, o controle do calendário torna mais fácil a manipulação de dois instrumentos essenciais do poder: o imposto, no caso do poder estatal; e os tributos, no caso de poder feudal. O calendário muçulmano foi sempre lunar e não o solar. Há o calendário baseado nas estações do ano. Uma função essencial do calendário é a de ritmar a dialética do trabalho e do tempo livre, o entrecruzamento dos dois tempos: o tempo regular, mas linear do trabalho, mas sensível a mutações históricas, e o tempo cíclico da festa, mais tradicional. O calendário, órgão de um tempo que recomeça sempre, conduz paradoxalmente à instituição de uma história cronológica dos acontecimentos. A história dos almanaques e dos calendários é uma história de reis e de grandes personagens, de heróis e, antes de mais nada, de heróis nacionais.

Capítulo 10 - Documento/Monumento.

A memória coletiva e a sua forma científica, a História, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Memória: fazer recordar. Monumento é um sinal do passado. O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar e recordação, por exemplo, os atos escritos. O monumento tem como características, o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas. Originalmente o documento se opunha ao monumento, que era intencional. Devemos criticar a história fundada sob os documentos. Embora a concepção de documento resista a mudanças, seu conteúdo se dilatou muito. O interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. Para Foucault o problema da história está em questionar os documentos. Desestruturar o documento evidenciando o seu caráter de monumento. O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. Não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira... falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. É importante não isolar os documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte.