RESENHA: ABREU, Regina. 1996.
A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco. 225 pp.
Os estudos antropológicos feitos a partir da análise de objetos, a outrora chamada “cultura material”, vêm sendo recuperados sob novas ênfases nos quadros internacionais da disciplina. Relacionada a essa retomada está a percepção acurada do significado das instituições que se constituíram como destinadas à guarda, tratamento e exposição de objetos, os museus. Tal consciência, articulada muitas vezes a problemas como os de formação de comunidades políticas nacionais, de memórias coletivas, da constituição de segmentos sociais determinados, ou ao estudo da história da antropologia, é ainda incipiente no Brasil.
O belo livro de Regina Abreu é um exemplo notável das possibilidades e relevância de estudos que tenham como ponto de partida materiais depositados em acervos museológicos na qualidade de coleções. Gerado a partir de uma dissertação de mestrado em antropologia social (Sangue, Nobreza e Política no Templo dos Imortais: Um Estudo Antropológico da Coleção Miguel Calmon no Museu Histórico Nacional, PPGAS/Museu Nacional, 1990), e tendo se beneficiado da revisão feita a partir de um estágio no Centre de Sociologie de l´Éducation et de la Culture da École des Hautes Études en Sciences Sociales (1994-95), o trabalho é profusamente ilustrado, tanto por fotografias integrantes do material estudado – elas mesmas documentos abordados no livro –, quanto por fotos dos objetos investigados, o que contribui sobremodo para introduzir o leitor em dimensões visuais pouco demonstráveis de modo escrito. A autora – hoje pesquisadora da Coordenação de Folclore e Cultura Popular/Funarte – tem também a seu favor ter pertencido aos quadros do MHN. Tal experiência indica as possibilidades analíticas que instituições dessa natureza – às vezes verdadeiros “metamuseus” – oferecem àqueles que sabem transformar seu cotidiano e sua familiaridade em matéria para (auto-)reflexão, despindo-se de pré-conceitos, da adesão fácil a uma realidade primeira e a estudos mais corriqueiros.
Em suas 225 páginas, A Fabricação do Imortal parte da valiosa coleção “Miguel Calmon du Pin e Almeida”, doada por sua viúva, Alice da Porciúncula Calmon du Pin e Almeida, ao Museu Histórico Nacional, em 1936. A dádiva teria intermediários: Pedro Calmon – afilhado e sobrinho de Miguel Calmon, político baiano, por duas vezes ministro de Estado –, conservador do Museu, regente da disciplina História da Civilização Brasileira na Universidade do Distrito Federal e quadro prestigioso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; e Gustavo Barroso, idealizador e diretor do Museu Histórico Nacional, escritor prolixo, ambos engajados em produzir uma “história nacional” de acordo com as representações de segmentos muito específicos das elites brasileiras da chamada Primeira República: aqueles que constituíam e se representavam como a “nobreza brasileira”, e em continuidade a essa.
Após uma contextualização do universo social mais amplo em que Miguel Calmon falecera, dos eventos que consubstanciaram a doação por sua viúva e das relações sociais que sustentaram tal ato, Abreu apresenta de modo objetivo as perguntas que se propõe: “Quem é essa senhora? Quem é o marido dessa senhora? Para que museu os objetos são doados? Como se caracteriza esse museu? Qual sua filosofia? Quem o dirige? Para que e para quem ele funciona? Quais os objetos escolhidos para serem doados? Como se processou essa escolha? Como esses objetos são incorporados pelo museu? Que lugar eles ocupam na hierarquia institucional? Quais os significados que eles encerram?” (:28).
Para respondê-las a autora lança mão de instrumentos da antropologia social, da sociologia e da história numa minuciosa indagação sobre os modos pelos quais se cria um novo “sagrado nacional” já sob os céus do regime republicano das primeiras décadas do século; sobre como essa “nobreza brasileira”, fração (dominada) das elites políticas da época, imortaliza-se enquanto portadora de uma tradição secular e, na pessoa de Miguel Calmon, simultaneamente, apresenta-se como um segmento modernizante, capaz de integrar a nova ordem política. Modelo de “servidor público”, um engenheiro dotado dos conhecimentos científicos necessários para arrancar o Brasil da situação de “atraso” em que o legado colonial e escravista o colocara em face do “concerto das nações”, a figura do fiel correligionário de Rui Barbosa (a quem chamava de chefe), ministro da Viação e Obras Públicas e, posteriormente, da Agricultura, Indústria e Comércio, sobrinho homônimo do Marquês de Abrantes – o “estadista de dois reinados” –, Miguel Calmon surge da análise enquanto exemplar para se entender o trabalho social de reconversão de uma herança “nobre” (estreitamente ligada ao exercício do poder sob o regime imperial, legado capaz de distinguir, readequando) às novas posições de poder que se configuram nas primeiras décadas da República.
Sob o signo de um genérico discurso evolucionista, em que as idéias de progresso e cientificismo positivista imperavam, tradição e modernidade, espaços públicos e privados parecem definir-se e recombinar em uma síntese histórica específica. Elabora-se um novo papel do “homem público”: dotado de uma formação universitária (sobretudo por deter, via de regra, uma posição hierarquicamente superior na sociedade), deverá atuar enquanto líder de um povo a ser formado, de uma nação a ser planificada e estruturada. Entrevê-se, aqui e ali, o jogo das relações entre classes e frações de classe que formaram o Estado federativo republicano no Brasil. Tal análise é feita à luz do resgate das informações sobre os objetos integrantes da coleção (o que, e como, Alice da Porciúncula decidiu expor para representar a trajetória social de seu marido), e de sua descrição na qualidade de semióforos, segundo o conceito de K. Pomian. Seu valor simbólico é destacado, dentre outros fins, para enfatizar o aspecto de permuta, troca equilibrada (numa feliz utilização de textos de Mauss e Malinowski), entre Alice da Porciúncula e o Museu: tal doação extraordinária, que aponta para a intenção de imortalizar o indivíduo pela via da memória coletiva, dentre outras contradádivas, foi aquinhoada com uma sala especial para sua exposição permanente em meio a outros emblemas da “história nacional”, com o direito consagrado no ato da doação a uma curadoria especial a ser exercida pela viúva e seu mordomo, estendendo-se prerrogativas de ordem privada a um espaço supostamente público.
Os doze primeiros capítulos do livro desentranham, pouco a pouco, dos variados objetos componentes desse “sistema” que é a coleção (móveis, jóias, roupas, esculturas, canetas, diplomas, fotografias, biografias e outros livros, dentre tantos), pela via do estudo de sua origem e trajetória, dos significados que os impregnam e constituem não só a “fabricação do imortal” Miguel Calmon, mas a vida social das elites políticas, seus valores, seus espaços de sociabilidade, as redes sociais que se entrecruzam na formação do Estado à época, suas relações com os países europeus e, de modo mais abrangente, um projeto implícito de uma “civilização brasileira”. São aspectos de grande importância para o conhecimento do período e das (pouco estudadas) elites brasileiras.
Nos cinco capítulos finais Abreu volta-se para o espaço escolhido para depósito e exposição desses semióforos e seus sentidos, em última instância para os planos de uma “história nacional” como perseguidos pelos segmentos sociais abordados, concluindo por ver as alterações às finalidades e sistemática de exposição do Museu Histórico Nacional. Nessa parte, Gustavo Barroso assoma como figura principal da descrição da autora. Reportando-se o leitor à “história” dos livros didáticos, mesmo os mais “atualizados”, é possível notar como os processos que Regina Abreu descreve nesse segmento do livro estão presentes e atuantes num “imaginário nacional” de ampla divulgação (e reprodução) até hoje.
Em sua dimensão textual – artefato literário –, A Fabricação do Imortal beira agradavelmente o romanesco, com um estilo claro e estimulante, conduzindo-nos (como numa investigação arqueológica), camada após camada através do(s) mundo(s) social(is) que perscruta, sem perder o rigor sociológico e as referências de contexto histórico. Como mandam as regras da boa antropologia, cá está uma etnografia densa, cujo poder de descrição permite vislumbrar múltiplos desdobramentos em outras pesquisas e supera os inevitáveis limites da escolha de instrumentais analíticos.
Sobretudo, sente-se aí o potencial que a pesquisa antropológica, aplicada em perspectiva histórica, tem no desvendar de processos sociais de longa duração ainda em curso. Afinal, os “imortais” mudam, mas continuam a ser “fabricados” e “desfabricados”, estratégias de consagração se redefinem, mas entram em jogo no cotidiano dos espetáculos estatais, e as margens de aplicação de instrumentos socioantropológicos cunhados para o tratamento de outras realidades histórico-sociais a temas e problemas em solo brasileiro devem ser preocupação permanenente do pesquisador em ciências sociais. Também nesses aspectos o livro de Regina Abreu é uma bem-vinda e importante contribuição.
* Alunos: Comentar sobre a relação interdisciplinar aplicada à metodologia e teoria á partir da pesquisa de Regina Abreu sobre o acervo museológico do Museu Histórico Nacional. Quais os campos de saber que entrelaçam-se na análise da autora? Quais os conceitos? Qual análise se pode compreender em seu trabalho? Qual a relação entre Museu, Saber e Poder?